Guardando da Terra: A Vigilância Ancestral dos Magüta em Defesa da Vida

Foto: SEGCUM

A vida pulsa no território onde o umbigo do mundo foi enterrado. Para os Magüta da região do Alto Solimões, proteger a terra não é apenas uma ação política é uma missão espiritual herdada de Yo’i, o ser ancestral que ensinou ao povo como cuidar do igarapé sagrado Eware. É lá que nascem os caminhos da vida. Hoje, essa missão ganha novas formas, diante de ameaças tão perigosas quanto silenciosas, como o narcotráfico, a biopirataria, o garimpo e a colonização mental por meio do álcool e das drogas.

Há décadas, os anciãos e jovens vêm construindo estratégias próprias de vigilância comunitária. O povo Magüta sabe que o Estado não caminha ao lado da floresta. Por isso, criaram sua própria força de proteção: a Segurança Comunitária Indígena de Umariaçu (SEGCUM), fruto de décadas de luta e resistência. Eles não atuam com violência, mas com sabedoria, orientação e cuidado sua força vem da coletividade.

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Os seguranças comunitários não são milícias. São guardiões. Eles não se escondem atrás de armas, mas atrás da coragem de proteger suas famílias, seus anciãos e o futuro dos seus filhos. Enquanto a omissão do Estado se intensifica, eles mantêm o olhar atento sobre suas ruas, igarapés, caminhos e casas. Cada passo de sua vigilância é um grito contra o abandono estatal.

As drogas e o álcool armas coloniais que fragilizam os corpos e os sonhos são vistas como as principais ameaças à juventude Magüta. São ferramentas usadas para desestruturar o território desde dentro. Em cada canto da comunidade, pontos de venda e consumo se multiplicam, enquanto crianças e adolescentes adoecem em silêncio. A SEGCUM atua com firmeza, enfrentando a raiz desses males.

A violência na região não vem só de fora. Ela é alimentada pela ausência de políticas públicas. As famílias vivem sem proteção, sem políticas sociais, sem alternativas dignas de lazer e cultura. O abandono favorece a criminalidade e transforma as comunidades em campo de batalha, onde os seguranças comunitários tentam conter a avalanche com as próprias mãos e corações.

Foto: @MagütaNative

Os membros da SEGCUM são voluntários. Não recebem salário. Não têm apoio logístico. Não têm equipamentos de proteção. E mesmo assim, estão presentes, todos os dias, atuando em nome da vida. Eles não esperam do Estado, porque o Estado muitas vezes os acusa de serem criminosos. Já foram chamados de “milicianos”, apenas por exercerem a defesa do seu povo algo que o Estado deveria fazer.

Para os Magüta, cuidar do território é cuidar do corpo da mãe-terra. E qualquer invasão, seja ela por armas, venenos ou ideologias, fere esse corpo sagrado. A violência não é só física ela destrói a cultura, a memória, a organização social. A vigilância é, portanto, um ato espiritual, político e vital. O território é onde começa a vida. É onde Yo’i semeou o saber.

As mulheres também são afetadas. Os jovens, também. As crianças, mais ainda. A SEGCUM age com base nos protocolos tradicionais como foi garantido no Art. 231 e 232 da Constituição de Federal e Organização Internacional do Trabalho - OIT e Declaração da ONU de 2007. A força da floresta está na escuta e na palavra.

Frente a tudo isso, surge um clamor: por que o Estado brasileiro não apoia os modelos indígenas de segurança? Por que não há orçamento público destinado à proteção dos territórios tradicionais da região do Alto Solimões? Por que os seguranças indígenas são criminalizados ao invés de valorizados? Onde estão os direitos humanos quando é a floresta que grita por socorro?

O projeto SEGCUM é um exemplo de resistência viva, que precisa ser reconhecido, financiado e protegido. É tempo de aprender com os povos indígenas como se faz segurança de verdade. Segurança não é repressão. Segurança é cuidado, é presença, é pertencimento. Se há esperança de futuro, ela nasce na floresta e brota do umbigo da terra que os Magüta protegem com a vida.

Foto: @MagütaNative

O boletim da Nova Cartografia Social (UEA/UNICAMP) de 2025 é testemunho dessa história que não será silenciada. É voz dos que resistem, dos que sonham e dos que já entenderam que o bem viver só é possível com território protegido. Quando se toca o chão sagrado, toca-se também a memória viva dos ancestrais e dos que ainda virão.

É chegada a hora de caminhar junto, de reforçar parcerias e exigir respostas. Que o Ministério da Justiça, o Ministério dos Povos Indígenas e os órgãos de segurança reconheçam a SEGCUM e tantas outras iniciativas comunitárias como política pública legítima. Porque não há democracia onde o povo originário precisa morrer para proteger o que lhe é de direito.

Foto: @MagütaNative

A juventude Magüta está pronta. Formada, capacitada, atuante. São comunicadores, estudantes, lideranças que assumem a continuidade dessa luta. Os mais velhos abriram os caminhos, e agora os jovens caminham sobre eles. E cada passo que dão, é guiado pelo espírito de Yo’i e pela sabedoria dos anciãos.

Este chamado é um convite à escuta, à solidariedade e à ação concreta. O que os seguranças indígenas pedem não é caridade é reconhecimento. O que os povos originários exigem não é favor é justiça. O que o território clama não é defesa com armas é proteção com sabedoria e coragem.

Foto: SEGCUM

Se o Brasil quiser mesmo ser uma nação plural, justa e diversa, precisa começar pelo início: ouvindo os guardiões do umbigo da terra. Porque onde há floresta viva, há povo vivo. Onde há povo vivo, há memória. E onde há memória, há futuro.

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