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Foto: La Magüta Native |
Tabatinga (AM) – A poucos quilômetros de onde os rios Amazonas e o Alto Rio Solimões, coração da tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia, vive um processo silencioso de etnocídio. Menos de dois meses após o histórico I Fórum Internacional Indígena: Segurança Pública, Justiça Social e Acordos de Paz em Contexto de Fronteira, realizado em Tabatinga em junho de 2025, a realidade nas aldeias indígenas do Alto Rio Solimões expõe um cenário de violência sem precedentes, abandono institucional e ameaças constantes à vida.
O documento, assinado por onze organizações representativas dos povos Ticuna, Kokama, Kaixana, Kambeba e Witoto, denuncia uma sucessão de crimes, violações de direitos humanos e omissões do Estado brasileiro. Os relatos incluem suicídios e tentativas entre jovens, feminicídios, abusos sexuais cometidos por agentes policiais, confrontos armados, presença de garimpeiros, tráfico de drogas, contrabando de álcool e ameaças diretas a lideranças indígenas.
Fonte: Comissão I Fórum Internacional Indígena/2025 |
FAZER DOWNLOAD AQUI: MORTES E VIOLÊNCIAS NO ALTO RIO SOLIMÕES
Mais do que fatos isolados, a nota descreve uma crise estrutural, enraizada em décadas de negligência, ausência de políticas públicas efetivas e falta de proteção para territórios estratégicos e vulneráveis.
O Alto Rio Solimões é uma das regiões mais sensíveis do território brasileiro. Situada no extremo oeste do Amazonas, é formada por municípios como Tabatinga, São Paulo de Olivença, Santo Antônio do Içá, Tonantins, Amaturá e Benjamin Constant. A tríplice fronteira com Colômbia e Peru torna a região estratégica para comércio, turismo, intercâmbio cultural mas também para o tráfico internacional de drogas, contrabando de mercadorias, exploração ilegal de recursos naturais e circulação de organizações criminosas.
Para os povos indígenas que ali vivem há séculos, essa configuração geopolítica significa conviver diariamente com ameaças externas, disputas territoriais e impactos diretos de crimes transnacionais. As fronteiras são permeáveis para o crime, mas quase intransponíveis para os direitos.
Em junho de 2025, lideranças indígenas do Brasil, Peru, Colômbia e Bolívia, acompanhadas de parceiros institucionais e representantes de órgãos públicos, reuniram-se em Tabatinga para discutir estratégias conjuntas. O I Fórum Internacional Indígena buscou, entre outros objetivos, fortalecer a segurança pública nos territórios, promover justiça social e construir acordos de paz que considerassem as especificidades culturais e geográficas da região.
As lideranças apresentaram diagnósticos e propostas para combater o contrabando e o tráfico, criar políticas específicas de saúde mental indígena, proteger mulheres e jovens e reforçar a fiscalização ambiental e territorial. Contudo, apenas cinquenta dias depois, a nota divulgada demonstra que a realidade continuou e, em alguns pontos, piorou.
Em junho de 2025, Tabatinga sediou o I Fórum Internacional Indígena, reunindo representantes do Brasil, Peru, Colômbia e Bolívia, além de parceiros institucionais, organizações indigenistas e órgãos públicos. O encontro teve como pauta central a segurança pública, a justiça social e a construção de acordos de paz para a tríplice fronteira uma região marcada pela complexa interseção entre culturas, economias ilegais, disputas territoriais e vulnerabilidades sociais.
Na ocasião, foram apresentadas propostas para conter a violência, fortalecer a saúde mental, combater o contrabando e implementar políticas de proteção às mulheres e jovens indígenas. No entanto, apenas cinquenta dias depois, as lideranças afirmam que pouco ou nada mudou. Pelo contrário: os episódios de violência se intensificaram.
Entre julho e agosto, a Terra Indígena de Umariaçu registrou dois suicídios em 6 e 13 de julho e três tentativas nos dias 13, 14 e 19 do mesmo mês. Todas as vítimas são jovens entre 15 e 21 anos. As lideranças denunciam que servidores da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) de Tabatinga têm insistido em associar todos os casos exclusivamente ao consumo de álcool e drogas, sem considerar outros fatores sociais, culturais e psicológicos.
O Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) do Alto Solimões, segundo a nota, está há mais de seis meses sem profissionais de psicologia nos polos-base de saúde de Umariaçu I e II. Diante disso, exige-se a convocação imediata de uma reunião com as lideranças organizadoras do fórum, incluindo representantes da SESAI em Brasília, para discutir a implantação urgente de um Plano Emergencial de Saúde Mental Indígena, com foco nas especificidades culturais e comunitárias.
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No mesmo período, ocorreram esfaqueamentos e espancamentos em brigas entre jovens em Umariaçu e na comunidade de Belém do Solimões (6 e 26 de julho). As lideranças atribuem parte dessa violência ao alastramento do consumo de drogas e bebidas alcoólicas nas aldeias, facilitado pelo contrabando e pela ausência de fiscalização eficaz.
Um caso particularmente grave foi a tentativa de feminicídio contra uma moradora de Umariaçu II, agredida violentamente no rosto e na cabeça no dia 19 de julho, correndo risco de perder a visão. Após ser atendida na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Tabatinga, não houve encaminhamento à delegacia. O boletim de ocorrência só foi registrado graças ao auxílio de pessoas não indígenas, revelando a distância entre as instituições de segurança pública e as comunidades indígenas.
O documento também expressa solidariedade às vítimas de feminicídio, como o caso de uma mulher assassinada pelo companheiro em Tonantins, em 2 de agosto. O suspeito foi linchado e queimado vivo pela população local dentro da delegacia municipal, em um ato extremo de vingança que evidencia a falência do sistema de justiça e segurança na região.
Na semana de 16 de julho, houve confronto armado entre piratas e traficantes no município de Tonantins, em frente a uma comunidade indígena, espalhando medo e insegurança. Em São Paulo de Olivença, foi confirmada a presença de garimpeiros na beira do rio. Lideranças kambeba, especialmente mulheres, relatam ameaças constantes por parte desses grupos.
O jornal independente Samauma publicou, em 18 de julho, denúncia sobre o abuso sexual sofrido por uma mulher indígena Kokama por agentes policiais na delegacia de Santo Antônio do Içá, expondo a vulnerabilidade do sistema policial e a impunidade que ronda tais crimes.
Em 9 de agosto, um homicídio foi registrado na estrada de Limeira, entre as comunidades de Umariaçu e Porto Nova Extrema. A vítima e os agressores pertenciam ao povo Ticuna. O crime ocorreu sob efeito de drogas e álcool; um dos envolvidos era menor de idade e outro, agente de saúde indígena de Umariaçu II.
“Percebemos que o Alto Rio Solimões não funciona nem na lei, nem na justiça”, diz o documento. “A inércia do poder público faz com que uma geração de crianças, adolescentes e jovens indígenas não consiga alcançar nem os 25 anos de idade.”
As organizações signatárias exigem que as autoridades públicas, em todos os níveis, articulem ações urgentes e coordenadas, com presença efetiva da justiça nos municípios e atuação ética e responsável das forças de segurança.
Segundo levantamentos das próprias comunidades, o número de casos de violência e mortes no Alto Solimões aumentou nos últimos três anos. Entre 2023 e 2024, registraram-se ao menos 15 feminicídios, 7 casos de abuso sexual e mais de 20 suicídios ou tentativas entre jovens indígenas. A ausência de dados oficiais confiáveis, segundo as lideranças, é parte do problema: o que não é registrado, não é combatido.
A vulnerabilidade é potencializada pela falta de presença constante de autoridades nas aldeias e pelo distanciamento físico e cultural entre as comunidades e os serviços públicos.
As lideranças que assinam a nota pedem:
01. Criação imediata de um Plano Emergencial de Saúde Mental Indígena, com participação das comunidades.02. Atuação mais presente e qualificada das polícias civil e militar nos municípios da região, com respeito às especificidades culturais.
03. Combate ao contrabando e à entrada de drogas e álcool em terras indígenas.
04. Proteção a lideranças ameaçadas por garimpeiros e outros agentes ilegais.
05. Apuração e responsabilização imediata de todos os casos de violência, especialmente aqueles envolvendo agentes públicos.
A nota encerra com um alerta duro: "O Alto Rio Solimões não funciona nem na lei, nem na justiça". Para as lideranças, a omissão do poder público está condenando uma geração inteira de crianças, adolescentes e jovens indígenas a não chegar aos 25 anos.
O que acontece no Alto Solimões vai além de violência isolada; trata-se de um processo silencioso de etnocídio, no qual a omissão do Estado, a presença de organizações criminosas, a exploração de recursos naturais e a falta de políticas públicas eficazes colocam em risco a vida e a cultura dos povos indígenas. Suicídios entre jovens, feminicídios, abusos sexuais, conflitos armados e ameaças constantes corroem lentamente a estrutura social das aldeias, enquanto a legislação, os órgãos de saúde e segurança permanecem distantes. Essa destruição não é imediata nem explícita como em massacres históricos, mas mata aos poucos a identidade, os saberes tradicionais e a própria possibilidade de sobrevivência das comunidades, caracterizando um genocídio silencioso que exige atenção urgente da sociedade e da comunidade internacional.
O documento é um chamado não apenas ao Estado brasileiro, mas também a organismos internacionais, à sociedade civil e à imprensa para que olhem para o que acontece no coração da Amazônia ocidental, onde a vida de milhares de pessoas está em risco não por desastre natural, mas pela ação e inação humanas.
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