Entre Encantados e Saberes: A Caminhada Magüta de Raimundo Ferreira em Umariaçu

 Professor Raimundo Leopardo Ferreira (Raimundo Leopardo Ticuna)

Foto: La Magüta Native

Magüta/Ticuna – Cientista Social, Educador, Historiador e Desenhista

Nascido em 02 de julho de 1971 – Ancestralizado em 06 de agosto de 2025
Aldeia Umariaçu 2, Terra Indígena Umariaçu, Tikuna – Amazonas


No dia 06 de agosto de 2025, o povo Magüta, a Terra Indígena Umariaçu, o Alto Solimões e o Brasil perderam fisicamente um dos maiores pensadores indígenas de sua geração: o Professor Raimundo Leopardo Ferreira, Tikuna, cientista social, historiador, desenhista, educador bilíngue e autor de saberes enraizados na terra, no povo e na resistência.

Mas, como ensina a sabedoria Magüta, ninguém parte quando deixa raízes profundas em sua comunidade. O professor Raimundo não morreu, ele ancestralizou. Ele agora caminha com os antigos, fala com os encantados, e sopra com os ventos do rio Solimões sobre as novas gerações que ainda virão.

Foto: Acervo/Sandro Ferreira

Raimundo Leopardo Ferreira iniciou seus estudos no internato de Surumu, localizado no município de Boa Vista, Roraima, onde cursou o ensino fundamental entre 1970 e 1977. Posteriormente, entre 1981 e 1984, cursou o magistério normal parcelado na Escola de Formação de Professores de Roraima. Com trajetória marcada pela formação de professores indígenas, esteve envolvido diretamente no desenvolvimento do curso de Licenciatura Intercultural, voltado para educadores indígenas, com o objetivo de integrar a língua e cultura ticuna ao currículo escolar.

Raimundo Leopardo Ferreira é graduado em Ciências Sociais pela OGPTB (Organização Geral dos Povos Ticuna do Brasil) e possui mestrado em Linguística e Línguas Indígenas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Sua formação acadêmica alia o conhecimento científico às práticas culturais e linguísticas dos povos indígenas, com ênfase na valorização e preservação das línguas originárias, especialmente a língua ticuna. Essa base lhe permitiu atuar como pesquisador, educador e defensor das tradições e saberes indígenas, contribuindo para o fortalecimento da identidade cultural e para a construção de políticas educacionais interculturais.

Foi morador da aldeia Umariaçu, onde atuou como professor bilíngue e defensor da educação indígena com identidade, espiritualidade e autonomia. Em suas palavras, que hoje ecoam como ensinamento e alerta, ele dizia:

"A educação verdadeira começa quando escutamos a nossa própria língua e respeitamos o modo como o nosso povo pensa e vive."

Foi um dos primeiros indígenas da região a participar de intercâmbios universitários nacionais e internacionais, levando a cosmovisão Tikuna para além das fronteiras do Brasil, sempre com um olhar crítico, ético e profundamente comprometido com os direitos coletivos dos povos originários.

As ilustrações de Raimundo Leopardo Ferreira são mais do que desenhos são expressões visuais da memória viva de um povo. Cada traço seu carrega o compromisso com a oralidade, a história e a espiritualidade do povo Magüta. Ao longo de sua vida, ele utilizou a arte como linguagem de afirmação cultural e política, retratando com profunda sensibilidade rituais, símbolos e personagens do universo Magüta.

Um dos temas mais recorrentes em sua obra é a Festa da Moça Nova e seus homens mascarados e grafismos Magüta (Wowatchira), ritual de passagem das meninas à vida adulta, um dos mais importantes para os Tikuna. Nas mãos de Raimundo, essa festa ganhava vida em traços fortes e delicados: os corpos pintados com jenipapo e urucum, os grafismos sagrados, os instrumentos de sopro e percussão, as máscaras dos espíritos e o círculo de mulheres em dança e canto. Suas ilustrações não apenas mostravam uma cena  elas contavam um ensinamento, evocavam um espírito.

Através do desenho, Raimundo honrava os mais velhos, mantendo vivos os ensinamentos das avós, dos pajés, das parteiras e dos guardiões da floresta. Seus cadernos e cartilhas ilustradas tornaram-se ferramentas pedagógicas que ensinavam, sobretudo às crianças e jovens indígenas, que sua cultura é bela, completa e digna de ser preservada. Seus desenhos eram, ao mesmo tempo, denúncia do apagamento e resistência poética contra o esquecimento.

Cada obra sua criava uma ponte entre passado, presente e futuro. Ele costumava dizer que desenhava "para mostrar que nós existimos". E de fato, por meio da arte, ele reafirmava a existência, a dignidade e a inteligência indígena. Em traços simples, mas carregados de profundidade espiritual e social, Raimundo expressava o que não cabia apenas nas palavras: o sentimento de pertencimento, o orgulho de ser Magüta, a conexão com os encantados e a terra.

Suas ilustrações aparecem em livros bilíngues, cartilhas escolares, capas de documentos oficiais e produções da OGPTB. Em todos esses espaços, ele fez da arte uma forma de educar, resistir e florescer. Desenhar, para Raimundo, era como semear histórias no papel para que as próximas gerações reconhecessem suas raízes e jamais se deixassem arrancar da terra e da memória.

Entre suas contribuições estão a coautoria de obras fundamentais como:

“Nós Ticuna e o Ensino Bilíngue”
“Nhuãcü meã nüna nadaugü i omü i TICUNAGÜ”
Cartilhas, livros e dicionários bilíngues Tikuna-português
Registros históricos e culturais publicados em parceria com a OGPTB, FUNAI, UFRN e Fiocruz, entre outras instituições.

Foi também desenhista e ilustrador de obras que eternizam visualmente a oralidade do povo Tikuna. Suas imagens, traçadas com tinta, carvão e memória viva, são hoje parte do patrimônio educativo e simbólico dos povos indígenas do Amazonas.

Como membro da OGPTB (Organização Geral dos Professores Tikuna Bilíngues), deixou um legado intelectual e espiritual que inspira a luta por uma educação realmente intercultural, crítica e decolonial. Raimundo foi um guardião dos saberes, um semeador de ideias e um homem de escuta profunda.

Em cada sala de aula, em cada palavra em Ticuna, em cada traço de suas ilustrações, permanece sua presença viva, ensinando com o coração e com a terra. Neste momento de luto e gratidão, celebramos sua vida como quem planta uma árvore de palavras e raízes de memória.




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