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Foto: La Magüta Native |
Em uma audiência pública histórica, realizada entre os dias 16 e 18 de julho de 2024 nos municípios de Atalaia do Norte e Tabatinga, o Plano Nacional “Pena Justa” rompeu o silêncio que sufoca as fronteiras do Amazonas. Denúncias fortes e vozes indígenas ecoaram pedindo justiça e não apenas penas.
O foco? Ouvir quem nunca foi ouvido. Povos indígenas, presos, representantes da sociedade civil, operadores do Direito e gestores públicos se uniram em um verdadeiro grito por dignidade humana. O relatório é devastador. A situação é crítica. E o recado foi dado: sem justiça intercultural, o sistema prisional brasileiro continuará falido.
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Foto: La Magüta Native |
A escuta também foi realizada na sede da UNIVAJA (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari), em Atalaia do Norte. Em território Umariaçu, aldeias às margens do rio em Tabatinga, o tom foi de desabafo. Lideranças apontaram a prisão como fim da linha para muitos jovens indígenas. “Sem oportunidade, sem trabalho e sem futuro, nossos filhos são empurrados para o crime”, disseram os lideranças. Assim também sem politicas publicas foi comparado a uma sentença perpetua.
Dentro da prisão de Tabatinga, o cenário é ainda mais sombrio. Detentos indígenas e não indígenas denunciaram a escassez de alimentos e a falta crônica de higiene. “A cela é insalubre, o fardamento é velho, e não temos colchões adequados”, relataram. O direito à dignidade virou lenda amazônica. A situação das mulheres presas foi classificada como alarmante. Não há celas específicas. Elas ficam em locais improvisados, em total descumprimento às recomendações do CNJ. “É inaceitável que ainda tratemos mulheres encarceradas como invisíveis”, reagiu a juíza Larissa Padilha.
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E onde está o Ministério Público? Ausente há mais de cinco meses na comarca de Tabatinga. Nenhum promotor, nenhuma denúncia, nenhum processo andou. O silêncio institucional virou rotina e a impunidade, regra. “Isso paralisa o Judiciário e alimenta o crime”, alertou o juiz Edson Rosas. Outra ausência gritante: Os internos indígenas não recebem nenhum tipo de acompanhamento específico por parte da SESAI. A invisibilidade cultural se torna, assim, uma prisão dentro da própria prisão.
A audiência mobilizou figuras como o prefeito Plínio Cruz, que destacou a complexidade da tríplice fronteira e os mais de 100 projetos sociais municipais. O vereador Jorge Martins ressaltou o poder do esporte como ferramenta de reintegração. Mas todos concordaram: sem políticas permanentes e estruturantes, a situação continuará explosiva. Representando o CNJ, Luana Marley explicou os quatro eixos do plano “Pena Justa”: superlotação, ambiente digno, reinserção social e políticas de não repetição. Mas reconheceu: “Sem vontade política e orçamento, não haverá mudança estrutural.”
A SEAP (Secretaria de Administração Penitenciária do AM) apresentou avanços desde 2019, como reformas nas carceragens e solicitam implantação de tecnologias como o BODYSKAN. Mas a falta de agentes penitenciários e recursos básicos ainda bloqueia qualquer avanço real. O Escritório Social de Tabatinga foi apontado como exemplo positivo. Acolhe egressos do sistema prisional com apoio psicológico e social. No entanto, ainda precisa de orçamento estável e apoio institucional para crescer.
Dentre as propostas apresentadas no âmbito do Plano Pena Justa, destacam-se aquelas que tratam de forma urgente e específica das necessidades dos povos indígenas em contexto de privação de liberdade. Entre elas, está a criação de um banco de intérpretes de línguas indígenas e da língua espanhola, assegurando que os indígenas tenham plena compreensão e participação nos processos judiciais e administrativos. Também foi proposta a implementação de protocolos interculturais de atendimento no sistema de justiça criminal, que considerem as especificidades culturais, linguísticas e sociais dos povos originários. A presença periódica da FUNAI na unidade prisional foi reafirmada como essencial para garantir acompanhamento institucional contínuo, acesso à saúde diferenciada e respeito às práticas cotidianas inclusive no interior do cárcere. Soma-se a isso a necessidade de inclusão permanente de profissionais como antropólogos e, sobretudo, antropólogos indígenas tanto nas unidades prisionais quanto nas estruturas do Judiciário, para assegurar uma leitura sensível, técnica e culturalmente adequada das situações que envolvem pessoas indígenas em conflito com a lei.
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Foto: La Magüta Native |
Durante a escuta realizada com os presos indígenas no presídio de Tabatinga, foi reafirmado o compromisso de diversas instituições e lideranças comunitárias com o acompanhamento e a defesa dos direitos dessa população vulnerável. A representante da FUNAI, Ednilda, chefe substituta da SEDISC da Coordenação Regional do Alto Solimões, destacou que, apesar do esforço institucional, muitas vezes a comunicação entre o sistema de justiça e os órgãos indigenistas falha, comprometendo o acompanhamento oficial das audiências e a prestação de apoio jurídico aos indígenas privados de liberdade. A presença do CAIS Povos Indígenas, do Escritório Social e das lideranças das comunidades de Umariaçu I e II foi reafirmada como essencial diante desse vácuo institucional. As próprias lideranças relataram que, em algumas ocasiões, foram impedidas de realizar visitas aos parentes presos, agravando ainda mais a falta de orientação jurídica e o desconhecimento dos trâmites processuais. A juíza Larissa Padilha, presente na escuta, ouviu atentamente os relatos e reconheceu a necessidade urgente de garantir a presença regular dessas instituições dentro do sistema prisional, assegurando escuta qualificada, mediação intercultural e respeito aos direitos fundamentais dos indígenas encarcerados.
A audiência também cobrou capacitação contínua dos agentes penitenciários sobre direitos humanos, visitas regulares de organizações da sociedade civil, inclusão de cursos profissionalizantes e o fortalecimento da Defensoria Pública única instituição com atuação constante na comarca. O plano “Pena Justa” ainda prevê a implementação de uma Central de Alternativas Penais, criação de fundo municipal para ações penais e inclusão de ações voltadas à saúde mental. A meta? Romper o ciclo manicomial e punitivista do sistema.
As propostas serão encaminhadas ao STF e ao Conselho Nacional do Ministério Público, com exigência de respostas concretas. “Se esse relatório virar mais um papel esquecido, seremos cúmplices do encarceramento em massa”, alertou uma liderança indígena. Para além das grades, ficou claro: o Brasil precisa enfrentar o racismo estrutural do seu sistema de justiça. Enquanto não houver respeito à diversidade étnica, cultural e linguística dos povos indígenas, a pena será sempre injusta. O clamor que saiu das celas de Tabatinga não pode ser ignorado. É hora de escutar a floresta, dar voz às aldeias e fazer da justiça não uma promessa, mas um compromisso real com a humanidade inclusive, e principalmente, com os povos indígenas da Amazônia.
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